quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ensaio sobre a curva

Nosso pensamento constrói nossa realidade. O filósofo alemão Hegel nos advertia em sua obra sobre a capacidade do espírito humano em modificar o ambiente ao nosso redor e, alguns anos mais tarde, um outro alemão, Schopenhauer, exemplificou a importância da "vontade" como condutor da ação humana sobre o mundo e como responsável por nossa capacidade de modificá-lo.

Enquanto para Hegel o mundo é o produto das mentes que o habitam e constroem e, para Schopenhauer, o mundo é o produto da força de vontade de indivíduos que se destacam, para Marx esse mesmo mundo é que produz seres humanos socializados de acordo com as regras já postas pela sociedade. Sinceramente creio que todos estejam certos em algum ponto, afinal, somos perfeitamente capazes de modificar o mundo ao nosso redor e sempre há um microcosmo pessoal sobre o qual nossa vontade impera soberana, ainda que sejamos sim socializados e educados por padrões de comportamento que foram criados e impostos muitos anos antes de nosso nascimento. A realidade social se dá por sistemas complexos integrados, nem criamos o mundo como queremos nem somos completamente moldados pelo mundo ao nosso redor. É nessa linha de pensamento que me peguei, ao estudar a Teogonia, de Hesíodo, com meus alunos do grupo de estudos Arquetelos.

A genética da ordem
No estudo da Teogonia, de Hesíodo, obra que procura contar o nascimento dos deuses e a instauração da ordem (em grego "Kosmos"), desde o caos, encontramos algumas divindades importantes descritas como tendo um "curvo pensar". Nesse pequeno ensaio vou me concentrar em apenas duas delas: Crono, filho de Úrano e Gaia e pai de Zeus, e Prometeu, filho de Jápeto e Climene e irmão de Métis, Epimeteu e Atlas. Mas porque especificamente Crono, deus agrário do limite, do corte e da colheita e Prometeu, divindade secundária diante dos deuses olímpicos, trapaceiro da ordem vigente e mártir, porque justamente esses dois seriam descritos por Hesíodo como portadores de um pensamento em curva? E o que viria a ser esse "curvo pensar", descrito por Hesíodo?

A curva
Ao procurar a origem da palavra "curva" fui levado a "curvo" que, segundo o dicionário etimológico significa "'que muda de direção sem formar ângulos', 'arqueado, inclinado, abaulado' (...) (geomet.) 'lugar geométrico de um ponto que se desloca no espaço com um único grau de liberdade'.

A curva delimita uma mudança de direção. A direção que então se seguia, o trajeto prescrito que até então se tinha como modelo, como padrão, depois da "curva", torna-se outro. O sistema que então operava sofre modificações às quais deve se adaptar ou contra as quais deve sucumbir lutando. A curva é uma mudança no caminho, e, se pensarmos efetivamente numa curva numa estrada, por exemplo, quanto mais acentuada, menor o grau de visibilidade teremos sobre o que há depois da curva. Por isso curvas fechadas são perigosas. Na entrada de cada curva temos o aumento da atenção e a diminuição da velocidade, afinal, atrás dela sempre está alguma incerteza.

Úrano, a primeira linha reta
A Teogonia, palavra grega que significa "nascimento dos deuses", trata do estabelecimento do Kosmos, palavra que significa "ordem", através de um início onde a primeira divindade era o Kháos, descrito como uma imensa mandíbula negra eternamente engolindo tudo ao seu redor. Para as nossas referências contemporâneas, podemos imaginar o Kháos como sendo um imenso buraco negro.

O fato é que é a partir do Kháos, desse imenso indiferenciado universal tragando tudo para dentro de si, é que teremos o estabelecimento da ordem, com o aparecimento do primeiro casal divino: Gaia e Úrano. Úrano, o 'céu estrelado', é o primeiro deus ordenador, o primeiro princípio de ordem e continuidade no universo, a primeira linha reta. Na realidade o simbolismo de Úrano é justamente essa linha reta traçada pela única ação iniciada por ele e nunca freada, a reprodução. Úrano representa o grande deus reprodutor, de uma forma completamente impensada, irrefreável, incontrolável. Ele permanece tendo relações sexuais eternas com Gaia, sua mãe-irmã-esposa (as categorias sociais não se aplicam nessa questão) que, apesar de grávida, não possuía espaço para que os filhos saíssem, já que Úrano era insaciável. Qualquer semelhança com a hiperprodutividade inócua e sem demanda do sistema capitalista contemporâneo não é mera coincidência!

Desesperada ela pede a seus filhos (todos dentro de seu ventre, que a essa altura já estava completamente rachado e gigantesco) que cessem a procriação desenfreada de Úrano. Todos se negam, por medo do pai, menos Crono "o de curvo pensar".

Crono, o de curvo pensar
O filho mais novo, depois de três gerações de filhos, é o que vai inaugurar a nova ordem, o que vai "curvar" a reta de Úrano, curvar a ordem vigente, estabelecer uma nova ordem, uma nova trajetória e direção. Para isso Gaia, sua mãe, o arma com uma foice feita "do líquido do seu seio", uma lâmina curvada feita de metal derretido no núcleo da terra.

Muito antes da foice ser colocada nas mãos da caveira recoberta de negro que no século XV passou a figurar como a representação mais comum da morte, muito antes da foice ter o significado simbólico daquilo que iguala todas as coisas vivas através da passagem pela morte, a foice teve outro significado. Para Crono a foice tinha o significado da punição, do castigo, de discriminação e de reinauguração de uma nova ordem. Exatamente como o significado que temos da curva, da mudança de direção.

 Esse significado fica mais claro para os que já estejam familiarizados com o jogo de tarô e com o arcano XIII, 'A Morte'. Os arcanos maiores do tarô, as cartas numeradas, são em número de 22, de forma que o número 13, 'A Morte', não pode necessariamente significar um fim (está pouco depois do meio do caminho), mas um reinício. A foice, na carta XIII, tem um valor positivo como a instauração de uma nova ordem.

Ao castrar seu pai, ao usar a lâmina curvada da foice para ceifar o movimento retilíneo e uniforme da procriação inesgotável de Úrano, Crono assume o poder, tornando-se o novo soberano e casando-se com sua irmã Réia. Amaldiçoado pelo pai a, como ele, ser deposto por um filho seu, Crono, com seu "curvo pensar", decide engolir seus filhos, revertendo a ordem natural da vida de forma a curvar o tempo de volta, trazendo novamente sua prole para dentro de si mesmo. A cada filho gerado e parido por sua irmã-esposa, Crono engolia, trazendo de volta a si o que deveria ser o produto natural da relação deles.

Deus canibal
Uma das distinções mais claras entre nosso conceito ocidental de civilização e de barbárie é a antropofagia, ou o canibalismo, o costume ritual de um povo de se alimentar de outros seres humanos. A literatura do século XVIII usava o costume do canibalismo como uma das formas de definir o que pertencia aos domínios da civilização e o que pertencia aos domínios da barbárie. Sob uma ótica evolucionista, tomando a cultura européia como o ápice da evolução cultural possível, tudo o que era estranho, diverso, em suma, não-europeu, era caracterizado como inferior ou "bárbaro". Assim também o costume do canibalismo.

Os diários de viagem de Cristóvam Colombo foram os documentos que consagraram o termo "canibal". A palavra deriva de 'cariba', expressão pejorativa que usavam os índios arawak para nomear seus inimigos e se referir à sua barbárie extrema. Com Colombo o termo fortalece essa designação e adquire novos significados. Em geral o hábito canibal foi explicado como um ritual de vingança e assimilação das características fortes do inimigo capturado. O texto que deu o pontapé inicial para uma discussão mais aprofundada sobre o canibalismo foi o de Michel de Montaigne cuja sentença "cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra" resume bem a questão. Afinal, se pensarmos bem, não são os índios que periódica e ritualisticamente comem o corpo e bebem o sangue de seu maior mártir, somos nós.

Toda nova ordem estabelecida, em seus primeiros tempos, é um período de insegurança, posto que as novas regras mesmo que estejam claras (e normalmente não o estão) ainda não foram fundamentadas no costume, no tempo, no hábito. Para que seja então fortalecida e estabilizada é necessário que ela adquira algumas das qualidades da ordem anterior, essa sim, enraizada no costume, no 'cultivo' diário (raiz do conceito de cultura). Toda nova ordem possui essa espécie de receio de não se estabilizar e, graças a isso, assume algumas características estáveis da velha ordem, ou seja: pratica um canibalismo ritual. Foi o que Crono fez. Limitou o poder dos filhos. Atento às dores de sua mãe Gaia e ao poder da vingança feminina, da qual ele foi instrumento contra seu outrora poderoso pai, Crono deixava que seus filhos viessem à luz e então os engolia. Não causando em sua esposa Réia, a mesma dor que seu pai Úrano gerou em sua mãe, Gaia. O canibalismo de Crono surge então como uma resposta para os desafios do processo de criação de uma nova civilização, de uma nova ordem. Ainda que um processo em curva.

A curva dominadora, o canibalismo estrutural
Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico (1928), radicalizou a proposta do canibalismo como processo de criação de uma cultura quando formulou a frase "só me interessa o que não é meu", alavancando a concepção de que a identidade cultural do brasileiro se constrói no ato de devoração do outro. É um jogo de dominação e resistência em que o "curvo pensar", traz propositalmente o outro, o diferente, a referência cultural alheia para dentro do próprio sistema com a intenção de assimilar o que lhe fosse interessante e descartar o que não lhe fosse. É um processo de reestruturação cultural operado na mesma lógica do sistema digestório humano.

Para criar uma nova ordem é necessário assimilar partes da antiga ordem. Esse é um dos maiores desafios para os de "curvo pensar".

Prometeu, as trapaças do curvo pensar
O segundo importante deus citado na Teogonia como tendo o "curvo pensar" é justamente Prometeu, o titã filho de Jápeto e Climene e irmão de Atlas, Epimeteu e Métis. Atentemos para a família de Prometeu: Primo de Zeus (seus pais são irmãos de Crono e Réia), seu nome deriva de "Métis", nome de sua irmã e que significa "Astúcia" ou "Malícia". Prometeu é aquele que antecede a astúcia, aquele que vem antes da malícia, ou o pré-vidente. Sua irmã, como já dito, é a própria divinização personificada da astúcia e seu irmão mais novo, Epimeteu, é aquele que vem "depois da astúcia", ou seja, o último a perceber, o lento, retardado ou o idiota.

O tempo em que se passa o mito de Prometeu é justamente o novo tempo, quando Zeus, o filho mais novo de Crono, acaba de destronar seu pai e exilá-lo, segundo Hesíodo, para o Kháos abaixo das profundezas do Tártaro (uma região mítica que fica abaixo da região abaixo da terra.). Zeus ainda está reticente em sua nova função de ordenador do universo. Simultaneamente extasiado e amedrontado com a nova posição, teme que ela seja posta em cheque pelos próprios mortais, que considera como "filhos". Dessa forma retira dos seres humanos o fogo. Não somente o fogo físico, necessário ao cozimento dos alimentos, ao calor e à proteção contra os animais à noite, mas principalmente o fogo metafórico, a inteligência, a sagacidade, a clareza de raciocínio e, em certa medida, a esperança.

Prometeu representa um curvo pensar também, o pensar que, enquanto a nova ordem se estrutura e se assenta, preocupa-se com os menos favorecidos, com a massa desprovida de poderes e capacidades diante da nova oligarquia de deuses que se estabelece. O pensar curvo de Prometeu, esse pensar que não se coaduna com a preocupação primária de Zeus e seus irmãos em manter e estabelecer a nova ordem acima de qualquer outro princípio, acaba de alguma forma infectando a Zeus que, ao fim de tudo, permite que Hércules, um de seus muitos filhos, o liberte da prisão em que ele, Prometeu, fora confinado e acorrentado, no alto do monte Cáucaso, onde uma águia vinha diariamente comer seu fígado, que se regenerava até o próximo dia.

A curva e a culpa
Hesíodo coloca em Prometeu a malícia e a perfídia, os pensamentos trapaceiros em relação aos deuses, já  outro autor, Ésquilo, coloca no mesmo Prometeu as belas qualidades de um mártir popular, aquele que com seu pequeno furto, o fogo brilhante de onde nascem todas as artes, um tesouro sem preço, conseguiu libertar os homens da obsessão da morte: "instalei neles as cegas esperanças... eu lhes presenteei o fogo... dele, eles aprenderão artes sem número" (Palavras de Prometeu, in Prometeu Acorrentado, de Ésquilo). De uma certa forma Prometeu simboliza a culpa e a expiação quando se "curva" uma determinada ordem ou a mesma culpa e expiação que sofremos quando não curvamos a nossa própria intuição, o nosso próprio espírito, aos desejos de uma ordem contrária.

Com Prometeu a curva é, simultaneamente, uma transgressão sagrada e humana. Algo necessário para o equilíbrio de uma nova ordem que se estabelece. Somente ordens conscientes de sua fraqueza, seja por serem novas e instáveis, seja por serem velhas e desgastadas, têm medo da curva, seja da curva de Crono, que limita a velha ordem que não se sustenta, seja da curva de Prometeu, que alinha e contrabalança a nova ordem que ainda não se estabilizou. Toda ordem, toda linha reta, que não admite a curva, a mudança de trajetória e o repensar, o pensamento transgressor e a liberdade de recriação do mundo, é patológica, é problemática e senil. O que mais fortemente manifesta essa patologia é o medo difuso. Toda ordem que não admite mudanças de percurso coloca, sobre cada mudança, o fantasma do medo.

Creio ser perfeitamente compreensível que, ao ligarmos nossas televisões ou ao passarmos diante de bancas de Jornal, os temas do medo, pânico, insegurança e incerteza sejam os mais comuns. Não me é estranho que as mulheres tenham suas curvas naturais transformadas em culpas pelos gurus da moda, ou que o Mercado Financeiro venha constantemente transformando qualquer possibilidade de mudança estrutural em seu sistema irreal de crédito em medo difuso, crise e pânico generalizado. Sinais de uma ordem que, cada vez mais, se torna incapaz de adequar-se às mudanças que ela mesma tem provocado.

Renato Kress
Antropólogo, Sociólogo, Cientista Político e diretor do Instituto ATENA
Criador do projeto Arquetelos

3 comentários:

  1. Entendo o medo como um ingrediente de forte expressão para todo processo de mudança e reflexão sobre o entregar-se às possibilidades. A curva entraria como elemento que desperta tal sentimento, especialmente por ser desconhecido o que vem depois dela. E como saber se não nos enfronharmos naquilo que sugere o desapego do "controle"? Novamente nos deparamos com as questões referentes ao apego à zona de conforto, à realidade limitada de nós mesmos e a não exploração do universo que se esconde internamente! Como sempre, parabéns pelos seus textos!

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  2. Querido Renato, lá vai uma primeira e modesta contribuição (o que pude escrever entre uma leitura e outra)
    A meu ver, o pensamento retilíneo só admite como guia a razão; o que diferencia o reto pensamento do "curvo pensar" é o pleno aproveitamento da intuição. A intuição é pensar/sentir com o corpo todo, o processo é físico, tortuoso, e não puramente mental.
    Predomina, no mundo em que vivemos hoje, o racionalismo da técnica. O marco inaugural dessa forma de pensamento costuma ser fixado em Descartes. As escolas filosóficas helenísticas, como a estóica e a epicurista, por exemplo, exigiam de seus discípulos não apenas o conhecimento dos dogmas fundamentais da doutrina, mas toda uma mudança de vida, dos hábitos e valores, assim como das estratégias cotidianas. A aceitação da ideia exigia, portanto, toda uma conversão do sujeito. Hoje sabemos que a famosa sentença socrática, “conheça-te a si mesmo” implica também um certo “cuide de si mesmo”, obscurecido pelos estudos “pós-cartesianos”. Assim, o homem antigo não se conhecia tão somente mediante um processo de reflexão ou diálogo interior, mas devia necessariamente entregar-se aos cuidados do corpo, a um regime dos afetos e apetites.
    O "curvo pensar" exige toda uma conversão do ser, no momento mesmo em que formula um ato de pensamento, ou de transformação.

    Obs.: A ciência racionalista e objetiva começa a dar seus primeiros sinais de exaustão. Um exemplo: a física mecânica sendo suplantada pela física quântica. A física quântica certamente exige um raciocínio "curvo", ainda que bastante sofisticado. Por meio dela, a ciência moderna alcança patamares de compreensão dos fenômenos físicos até então de domínio exclusivo da magia, da alquimia e outras ciências pejorativamente chamadas de "ocultas", "esotéricas"

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  3. Nestas questões sinto-me uma criança. E, como tal, ouso questionar: o pensamento curvo, tal como é descrito, não nos leva a viver em ciclos, que se repetem indefinidamente, até atingirem a decadência? Decadência essa que dará início a novos ciclos, e por aí fora...?

    Abraço

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