segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Mitologia, deusa tríplice

Ensaio sobre as origens das leituras gregas da narrativa da vida.

Aos meus 13 anos ainda se ganhavam CD´s de presente. Lembro-me de ter ganho um CD da banda Extreme que me causou uma impressão muito marcante. Se chamava "III sides of every story" - três lados de toda história - e a contracapa dele dividia a sequência de quatorze músicas em três fases: "Yours" (sua), "mine" (minha) e "the Truth" (a Verdade). Para um aluno apaixonado por história e artes, ainda em época de colégio, foi uma grata surpresa compreender que a ideia de perspectiva poderia se aplicar também a uma forma de contar ou de ler uma história. Talvez tenha sido a partir daí que comecei a realmente compreender o que mais tarde vim a desenvolver na faculdade de antropologia e nos estudos sobre cultura e as diversas formas do ser humano de habitar e narrar sua aventura sobre um único planeta.

Aos vinte e poucos anos reiniciei uma antiga paixão pela mitologia e foi maravilhoso perceber de fato o que intuitivamente eu já reconhecia, que 'mythós' (mito) não é "mentira", nem "lenda", nem "fantasia", mas é um discurso que procura traduzir a nossa experiência de estar vivos, a nossa jornada na terra, o que nos é importante, valoroso ou proibido, uma narrativa que tem o poder de definir o que tem e não tem valor, seja ele um valor simbólico, pessoal, cultural ou financeiro e, mesmo dentre eles, qual o que nos motiva social ou intimamente a agir.

Um sentido para a narrativa da vida
Foi importante reencontrar o mito, a narrativa que doa sentido para a realidade que vivemos, justamente no meio da faculdade de antropologia. Entre Bronislaw Malinowski, E.E. Evans Pritchard, Cláude Lévi-Strauss e tantos outros antropólogos e cientistas sociais que buscavam na narrativa da existência humana uma estrutura, uma coerência íntima a partir de um discurso próprio daquele povo e não a partir dos referenciais (ou da "gramática") da cultura européia. Foi a partir daí que pude compreender a natureza caótica da existência humana e como a ausência de um sentido único e primordial abria espaço para a verdadeira e heróica obra do homem como criador, como doador de sentido para o seu mundo, em qualquer época ou local.

O homem precisa de sentido. Quer entendamos a palavra "sentido" como um "significado" profundo para as nossas experiências felizes ou infelizes, quer entendamos "sentido" como "direção" dentro de uma trajetória de vida. Na realidade creio que definir o sentido (significado) é o primeiro passo para definirmos o sentido (trajetória) no espaço, no tempo, nas experiências. A vida sem sentido pode ser caótica, frígida ou mesmo insuportável, jamais uma vida meritória, plena. Ainda que refaçamos, que reestruturemos o sentido (significado) ao longo - o que é perfeitamente natural e saudável - precisamos ter um sentido (trajetória) para dar sentido (significado) às nossas vidas.

Razão cartesiana e razão simbólica
Quando estudamos a mitologia grega, submersos no vício cartesiano da racionalidade linear, caímos em algumas contradições complexas e taxamos o mito de irracional. Afinal de contas, por exemplo, como poderia Afrodite ser filha e tia de Zeus, como poderia Perséfone ser a fiel esposa de Hades e ter sido mãe de Dioniso, fecundado com Zeus, seu pai? A racionalidade do mito, da narrativa que busca dar significado para essas histórias, não é da natureza cartesiana, mas da natureza simbólica, como nossos sonhos, como nosso inconsciente. Além do quê temos diferentes versões para a raiz da mitologia grega. Esse ensaio a quatro mãos, realizado pelos membros do Arquetelos falará justamente sobre as três maiores tradições que nos chegaram: Hesíodo, Homero e Orfeu.

A deusa tríplice
Na mitologia grega temos vários deuses e deusas tríplices, representando leituras diversas de uma mesma realidade. Podemos entendê-los como lentes ou filtros de percepção e leitura da realidade. Os três grandes irmãos: Zeus, Pósidon (Poseidon) e Hades podem configurar as leituras racional, emocional ou física de uma mesma realidade, assim como as deusas fiandeiras do destino Cloto, Láquesis e Átropos significam começo, meio e fim da vida ou como Ártemis, Selene e Hécate significam as três fases da lua. Identificaremos, nesse ensaio, Hesíodo, Homero e Orfeu como versões de uma mesma história. Nem sempre os mesmos personagens terão a mesma natureza ou os mesmos papéis e isso apenas significará que estamos diante de uma leitura humana, sem a pretensão divina de alcançar uma única grande 'Verdade' absoluta. 'Verdade' essa que jamais foi encontrada na história humana sem que gerasse prepotência, violência, intolerância e discórdia. Estamos diante da possibilidade de uma leitura plural, de uma coexistência de 'verdades', sem maiúsculas, sem pretensões, apenas a de que é possível conhecer e respeitar várias, ainda que se tenha uma preferida.

Bem vindos ao multiverso do mito, ao pluriconvívio das narrativas.

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